terça-feira, 30 de março de 2010

Dessa pra outra.


Sinto em dizer que te deixo agora. Já fiz a minha parte contigo. Mostrei-te o caminho. Falei-te da verdade, das belezas da alma. Sinto em dizer que te deixo agora. Teus sonhos não me bastaram, não me seguraram. Teus olhos cintilantes não puderam me cativar eternamente. Tua felicidade não me foi suficiente. Sinto em dizer que nesta vida eu não vivo mais. Despeço-me de ti, vida minha, porque conheci outra vida. Uma vida que não possui tanta beleza, nem tem sonhos coloridos como os teus, mas me parece comportar uma felicidade que não conheci contigo. Felicidade que vem do fazer, do agir, do se sentir seguro. Sinto em dizer que és insegura, vida minha. És insegura porque te cuidaram desde o teu nascimento. Deram-te tanto apoio, velaram por ti, te amaram demais. E tu, vida, esqueces que o mundo não comporta tanto amor assim?
Sinto em dizer que te deixo agora, mas quero que saibas que sempre estarei por perto. Procurarei os caminhos pelos quais eu possa passar por ti, te ver de longe, porque apesar de tudo tu és a mais bela de se ver. És como uma obra de arte emoldurada. Serás um colírio para os meus olhos secos de lágrimas deixadas por essa nova vida. Gostarei de me encontrar contigo nos acasos do mundo. Tu verás o quão rápido envelhecerei. Verás no meu sorriso o sofrimento do mundo. Sofrimento este que tu não tens nem terás sofrido.
Sinto em dizer que te deixo agora, vida minha. Sinto por ti, que sofres em me ver partir. Sinto por mim, que parto sabendo não poder voltar jamais.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Presença

Não hesitou. Deu um último sorriso, meio irônico, meio sincero, completamente triste, falou umas duas ou três palavras que não escutei, virou-se e saiu. Não mudou nada de lugar como sempre fez. Deixou o apartamento exatamente como gostava que estivesse, organizado do jeito dela: vários origamis coloridos espalhados pelos móveis, algumas flores artificiais em latinhas de refrigerante [sempre achei tão infantil], incenso na janela, janelas [todas] abertas, e no meu mp3 pronta pra tocar "Atoms for Peace" típica dela, quando as coisas não iam muito bem. Dizia que os origamis a faziam companhia na minha ausência. Dizia também que as flores eram artificiais porque ela podia imaginar um cheiro diferente pra cada uma delas em horas diferentes. O incenso sempre na janela, na esperança de eu ter vontade de acendê-lo pra compartilharmos o mesmo cheiro.
Deixou assim porque sabia que na hora eu não correria para alcançá-la nem decidiria sair pra tomar um ar lá fora; ficaria sentado no sofá por algum tempo, em silêncio, ouvindo o mp3. Previsível, sempre dizia. E assim foi. Observei cada detalhe antes de sentar; toquei as flores artificiais como se fossem reais; acendi o incenso com a vontade que nunca tive antes; e coloquei todos os origamis em uma posição em relação ao sol que provocassem sombras grandes [aprendi com ela]. Depois sentei, mas mudei a música. Por birra, talvez... por não querer que ela me intimidasse também nisso. Mas ela estava em tudo, não precisava estar presente em música ou em corpo. Estava no cheiro da minha camisa, nas cores das minhas paredes, nos sons das minhas memórias, nos porta-retratos de todos os tamanhos, no anelar da minha mão esquerda, em parte da minha vida. Estava nos meus sonhos estranhos, nos meus desejos sexuais, nos meus sorrisos exagerados.
O tempo que fiquei ali sentado foi o tempo suficiente. Suficiente para odiá-la por entrar na minha vida e odiá-la por sair dela. Suficiente para odiá-la por me levar uma parte minha, que já era dela.
O tempo que fiquei ali sentado foi o tempo suficiente. Suficiente para desejá-la por perto. Suficiente para desejá-la comigo, porque ficando sem ela ficaria também sem mim.

domingo, 14 de março de 2010

Foi grave, mas dissolvido.

O olhar foi sério, mais firme que a vontade. A palma da mão foi áspera e a dor foi mais forte dentro que fora. Sentiu pela vida, sentiu pelo erro. Quis derreter, dividir-se em moléculas, desaparecer! As mãos tremeram, as pernas também. E a lágrima rolou, porque lágrima é dor exposta. Lágrima é fraqueza, é fracasso.
Preferiu permanecer do jeito que ficou: estática, olhar no chão, cabelo no rosto, vergonha no ar. Não proferiu palavra, não levantou os olhos, não procurou sentido.
Voltou pra bolha e dissolveu tudo em música e prosa.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Visão

Refiz minha janela.
Passei de oliva pra bandeira,
tirei a tela.

E o sol tocou o chão,
feito música, quando toca o coração.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Na Memória

Do mesmo jeito que o vento bateu na janela e agitou a cortina, desse jeito a imagem ficou paralisada, gravada na memória. Fechou os olhos e gravou mais esta, a cortina agitada pelo vento na janela. Já tinha gravado, até então: o sol da manhã, que iluminava o vaso da mesinha da sala, provocando uma sombra enorme que parecia fazer parte do tapete; o sorriso grande de uma criança que fazia marmotas com um coleginha, voltando do colégio; o vapor que levantava do café sendo passado pelo irmão no bule colorido [gravou também o cheiro, desta vez]; e mais o som do sino da igreja que mostrava sete horas, misturado com a música animada que estava ouvindo na mesma hora.
Fez uma coletânea. Guardou tudo na memória, como fotos capturadas no dia-a-dia. Organizou por ordem de captura e coloriu cada moldura de acordo com a cor de cada hora. Desejou dar então cara captura para alguém especial, alguém que recordasse junto com ela as cores do seu dia. Foi imaginando cada captura sendo compartilhada, deixando de ser parte somente dela para ser também de alguém. Depois disso, abrindo os olhos, apagou com o pensamento todas as capturas desse dia, deitou e dormiu. Estava pronta para mais uma coletânea de imagens no despertar do próximo dia.